A minha ideia infantil de 'ler todos os livros do
mundo' continua de pé; entretanto, acrescentei a palavra "possíveis"
à frase.
Como em toda minha vida não fui leitora o tempo
todo, pois, evidentemente, tive que trabalhar para me sustentar e à minha família,
não consegui ler todos os livros que queria, nem todos os autores que queria.
Porém, nunca é tarde, diz o ditado.
Jorge Luis Borges, o argentino de quem muito ouvi falar, finalmente chegou às minhas
mãos. Só agora?, dirão. Pois é, só agora.
"História da
eternidade" é a primeira obra dele a que tenho acesso.
Buscarei outras, com certeza.
Dando uma rápida lida em sua biografia, vejo que -
sem modéstia - temos alguns pontos em comum. Ele amava ler; dizem ser
dele a frase:
"sempre
imaginei que o paraíso seria um tipo de biblioteca"; "Não tenho a
certeza de que eu exista. Sou todos os escritores que li, todas as pessoas que
conheci, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei, todos os
meus antepassados.”
E assim por diante.
Na sua história da eternidade, publicado em 1936,
que contém, além do texto que dá título ao livro, ensaios sobre: As kenningar;
A metáfora; A doutrina dos ciclos; o tempo circular; os tradutores das 1001
noites; e Duas notas: a aproximação a Almotásim, A arte de injuriar.
Não me estenderei fazendo uma análise profunda do
livro.
Observo que sua linguagem é rebuscada, há
referências a autores filósofos, escritores da literatura mundial, uma crítica
ferrenha e comparativa entre vários autores, e um grande conhecimento literário
e cultural. Borges é admirável, além de grande.
Sintetizando: Em História da eternidade, analisa as
diversas formas de medir o tempo a que a humanidade foi submetida. Traz autores
gregos entre tantos outros. Ressalto, no início:
"Invertendo o método de Plotino (única
maneira de aproveitá-lo) começarei por lembrar as obscuridades inerentes ao
tempo: mistério metafísico, natural, que deve preceder a eternidade, que é
filha dos homens. Uma dessas obscuridades, não a mais árdua nem a menos
bela, é a que nos impede de precisar a direção do tempo. Que flui do
passado para o futuro é a crença comum, mas não mais ilógica é a contrária,
aquela que Miguel Unamuno gravou em verso espanhol:
"Noturno, o rio das
horas flui
de seu manancial, que é
o amanhã
eterno..."
Alguns excertos:
"A eternidade é um mero hoje, é o fruir
imediato e lúcido das coisas infinitas".
"Viver é perder
tempo: nada podemos recuperar ou guardar a não ser sob a forma de eternidade
(Jorge Santayana)".
"O tempo, se
podemos intuir essa identidade, é uma ilusão: a indiferenciação e a
inseparabilidade de um momento de seu aparente ontem e de outro de seu aparente
hoje, bastam para desintegrá-lo".
"...a vida é pobre
demais para não ser também imortal."
"O melhor documento
da primeira eternidade é o quinto livro das Enéadas; o da segunda, ou cristã, o
décimo-primeiro livro das Confissões de Santo Agostinho. (...) Pode-se afirmar,
com uma suficiente margem de erro, que "nossa" eternidade foi decretada
poucos anos depois da doença crônica intestinal que matou Marco Aurélio
(...). Apesar da autoridade de quem a ordenou - o bispo Ireneu -, essa
eternidade coercitiva foi muito mais que um simples paramento sacerdotal ou
um luxo eclesiástico: foi uma resolução e foi uma arma."
Várias e profundas reflexões sobre a eternidade
andam pelo texto.
Lembrei, ao ler suas reflexões sobre o
tempo/eternidade, que, dia destes, em meu caderno antigo, achei algumas
anotações que fiz de falas de meus filhos mais velhos, quando pequenos. Rindo,
pensei: acho que eu tinha um pequeno filósofo dentro de casa. Vejam o que
disse meu filho Gérson, aos 9 anos de idade:
"- Mãe, amanhã não existe.
Eu: - Por quê, filho?
- Por que o amanhã nunca
chega; hoje é o amanhã de ontem, e amanhã vai ser o outro hoje, e ontem é ontem..."
Comentarei somente mais um dos ensaios: "A
doutrina dos ciclos".
De forma ácida, irônica e irrefutável, Jorge Luis
Borges dá um chega pra lá na teoria do 'eterno retorno' de Nietzsche
(Assim falou Zaratustra).
Primeiro, matematicamente, fazendo alguns cálculos
cabeludos sobre de quanto em quanto tempo poderia haver o retorno à
estaca zero, e a repetição da história. Chega a ser cômico: "O atrito
do belo jogo de Cantor com o belo jogo de Zarathustra é mortal para este
último. Se o universo consta de um número infinito de termos, é
rigorosamente capaz de um número infinito de combinações - e a necessidade de
um Regresso fica vencida. Resta sua mera possibilidade, computável em
zero."
Gol de Borges!
E refere: "Escreve Eudemo, parafraseador de
Aristóteles, uns três séculos antes da paixão e morte de Cristo: A acreditar
nos pitagóricos, as mesmas coisas voltarão pontualmente e estarei comigo outra
vez e eu repetirei esta doutrina e minha mão brincará com este bastão, e assim
por diante." Na cosmogonia dos estóicos, Zeus se alimenta do mundo: o
universo é consumido ciclicamente pelo fogo que o gerou e ressurge da
destruição para repetir uma história idêntica."
Menciona Borges que a teoria do eterno retorno
iniciou-se lá atrás, nas calendas gregas, passou pelo cristianismo e por outras
teorias, das quais apropriou-se Nietzsche para formular as suas ideias - quer
dizer, apropriar-se das de outros, sem ao menos referi-las, ignorando seus
precursores. E seus seguidores babaram, achando o máximo!
E para fechar:
"Sou de opinião, todavia,que não devemos
postular uma surpreendente ignorância, nem tampouco uma confusão humana,
demasiado humana, entre a inspiração e a lembrança, nem tampouco um delito de
vaidade. Minha chave é de caráter gramatical, direi quase
sintático. Nietzsche sabia que o Eterno Retorno é das fábulas ou medos ou
diversões que voltam eternamente, mas também sabia que a mais eficaz das
pessoas gramaticais é a primeira. Para um profeta, cabe assegurar que
seja a única. Derivar sua revelação de um epítome, o da Historia
philosophiae graeco-romanae dos professores suplentes Ritter e Preller, era
impossível para Zarathustra, por razões de voz e anacronismo - quando não
tipográficas. O estilo profético não permite o emprego das aspas nem a
erudita citação de livros e autores..."
Vale a pena a leitura. Fantástico, divertido e
irônico. Além de várias referências literárias, para ampliar os conhecimentos
de quem se habilitar.
Borges, Jorge Luis.
História da eternidade. Trad. Carmen Cirne Lima. 4ª ed. SP:Globo, 1953.