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O livro de Saramago que tenho às mãos. |
Mais uma crônica dominical, mas não, necessariamente, semanal. Verifico, espantada, que há tempos não escrevo. Os compromissos da vida me enleiam, às vezes sinto-me amarrada.
Mas, mesmo assim, seguimos nossa caminhada rumo ao fim. E que este seja bom, belo, sereno, indolor. De preferência, dormindo.
Neste ínterim, leituras.
O Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago, deixou-me reflexiva nestes "tempos bicudos", como dizia Mário Quintana. Estamos, novamente, frente às eleições presidenciais, renovação do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas Estaduais, bem como governadores.
O povo, em geral (nós), já discute quem seriam os melhores candidatos; a ilusão do voto, de que a vontade popular será respeitada, e que o povo "manda" no país, através do voto e da pretensa democracia, já toma conta de muitas cabeças desavisadas. Infelizmente, em nosso país, as pessoas com discernimento político real, são pouquíssimas. A base do povo, da pirâmide, nem digo social, mas cultural, é tão pequena, que, creio, não temos como medir.
O que, realmente, concretamente, acontece nos meios políticos, nos lugares onde se negocia de fato os rumos da nação, onde se decide tudo, só uma ínfima quantidade de pessoas faz parte e tem conhecimento. O povo vive em outro mundo, o da vida real, em que as pessoas levantam cedo todo o dia para trabalhar, enfrentam todo tipo de dificuldades, começando pela alimentação adequada, transporte, seja individual ou coletivo; falta de estrutura em estradas, ruas, cidades; escolas com sua parte física muitas vezes caindo aos pedaços, ou lugares onde nem escola tem. Falta de emprego para uma grande parcela da população; escolas nem sempre com professores bem preparados, uma vez que a educação, infelizmente, não é e nunca foi primazia em nenhum governo em nosso país. É, e continuará sendo, tema de campanha; mas, nunca, tema de solução.
Assistimos, estarrecidos, noticiários (em qualquer canal televisivo, ou pela internet), lemos em jornais e revistas, e vemos pessoas perto de nós sofrendo com atendimento precário à saúde, com hospitais sem médicos ou com poucos médicos; onde faltam medicamentos e diversos materiais de uso corrente. Vemos, perto de nós, a violência tomando conta, sejam assassinatos, roubos, furtos, violência contra a mulher, contra crianças.
E vemos os políticos gastando milhões, bilhões de dinheiro nosso - chamado público - em suas campanhas para reelegerem-se. Fora a corrupção, altamente desenvolvida em nosso país e exaustivamente demonstrada através de processos judiciais penais em andamento, em que políticos famosos e seus correligionários, amigos, financiadores e outros tais foram condenados e estão presos. Isto dá nojo.
O que Saramago tem a ver com isto?
O livro que mencionei narra uma história em que 80% dos eleitores da capital de um país fictício votam em branco. Demonstram, assim, sua insatisfação, sua revolta, a devolução do cuspe na cara que os políticos dão ao povo todos os dias. O famoso "o povo é só um detalhe" de uma ex-ministra da fazenda da era Collor. O que os políticos deste romance fazem, para tentar descobrir quem fazia parte deste alto número de revoltados? Declaram estado de sítio na capital, abandonam a cidade, retiram serviços essenciais, bombeiros, polícia, hospitais, etc, e mandam o exército cercá-la.
O povo, entretanto, continua vivendo sua vida, trabalhando, comendo, dormindo, se divertindo, como se nada tivesse acontecido. Ninguém admite que votou em branco, pois o voto é secreto, e ninguém é obrigado a dizer em quem votou ou como votou. E ninguém dedura ninguém. Ninguém sabe, ninguém viu.
No entanto, os políticos tinham que dar uma resposta a esta "ofensa". O primeiro ministro reúne o gabinete; um dos ministros - o do interior - se encarrega de encontrar o culpado, o ou a cabeça do fato. Nisto transcorre a história, a investigação, policiais, comissários, e se acha uma pessoa culpada. Pelo decorrer da história, nós, leitores, sabemos da inocência da mulher. Mas, ao final, como exemplo, ela é assassinada, bem como o comissário. Alguém tem que ser culpado pelo levante da "epidemia branca" dos eleitores.
Quem quiser refletir antes das eleições sobre este fato, está aí uma ótima indicação. Saramago sendo Saramago. A sabedoria em pessoa.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a lucidez.- SP:Cia. das Letras, 2004, 325p.