terça-feira, 2 de novembro de 2021

E ELAS FICARAM PRESAS NO CEMITÉRIO...





 

...o que mais amo neste cemitério é precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta. (...)

Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio.  Olhou em redor. A peça estava deserta.  Voltou a olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada.  Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso. (...) Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro.  Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás. (...)

- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem  uma frincha na porta.  Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho.  Você terá o pôr-do-sol mais belo do mundo. (...)

E, de repente, o grito medonho, inumano:

-NÃO!

Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado.  Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra.  Assim que atingiu o portão do cemitério, lançou ao poente um olhar mortiço.  Ficou atento.  Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado.  Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira.  Crianças ao longe brincavam de roda.”

TELLES, Lygia Fagundes. Mistérios.- RJ: Nova Fronteira, 1981. Conto: Venha ver o pôr-do-sol, p.201

 

             As primas havia muito não se encontravam por causa da pandemia.

         Com uma diferença de idade de sete anos, cresceram longe uma da outra.  Moravam em cidades diferentes.

     Agora, na fase quase e pós-sessenta, reencontraram-se.

     Algumas afinidades surgiram.

    Uma foi visitar a outra, foram jantar num restaurante conhecido e, após, tomaram uma garrafa de vinho branco; ficaram conversando até tarde, fazendo o que chamaram de terapia familiar, trocando impressões a respeito de alguns eventos em suas vidas.

    De acontecimentos políticos a posições ideológicas, criação dos filhos, traumas da infância – quem não os tem? – estudos, profissão, viagens e aposentadoria... tudo era assunto.  Muita risada e um pouco de vinho deixaram-nas leves.

   No outro dia resolveram ir levar flores e pronunciar preces à tia recém-falecida, mãe da mais velha.

    Chegaram ao cemitério municipal pelas dezessete horas.

   O dia estivera cinzento, emburrado, e não decidia se chovia ou não.  As nuvens meditavam.

  O cemitério estava lotado, já não havia mais lugar para nenhum falecido, e as autoridades municipais já haviam inaugurado outro cemitério.

   Rapidamente localizaram o túmulo em que se encontravam os queridos familiares.

   Colocaram as flores, fizeram suas orações e dirigiram-se para a sepultura de outra tia e de uns primos, que eram perto.

   Já iam encaminhando-se para a saída, quando lembraram que poderiam encontrar o túmulo dos avós.  Fica lá no centro da necrópole, perto daquele coqueiro.

    Começara uma garoa bem fininha, e o céu escurecera mais um pouco.

    Caminharam por entre os jazigos, em calçadas estreitíssimas e de difícil acesso.

   Chegaram ao coqueiro.  A mais velha sempre teve dificuldades de localizar a tumba dos avós, era um emaranhado de túmulos, um labirinto... Caminharam para todas as direções a partir do coqueiro. Não localizaram.

    Como a chuva estava ficando mais intensa e escurecendo, resolveram falar com o funcionário que tinha tudo anotado.

     Foram em direção ao posto em que ele deveria estar.

     Com as sombrinhas abertas, avistaram, ao longe, um vulto.

     - É ele – disse a mais velha.

     Não era.

  Na semi-obscuridade momentânea, confundiram uma imagem de um anjo de sepultura com a pessoa que deveria estar por perto.  O escultor fizera um ótimo trabalho...

  Desceram mais um pouco.  O posto estava fechado. Dezessete horas e trinta minutos, conferiram no relógio.

    Com dificuldade, desceram até o portão por onde haviam entrado.

  Corações acelerados, ansiosas, verificaram que o portão norte estava fechado, chaveado. Com corrente e cadeado!

    Havia quatro portões.

    O que ficava em frente a este, lá longe, ao sul, também estava fechado.

    A mais nova estava em estado de pânico.

     - E agora, que fazemos? Estamos presas no cemitério! Vou perder meu ônibus...

    Ambas cardíacas, com hipertensão e assustadas...

    Aterrorizadas, foram ver os outros dois portões.  Fechados.

   A mais velha lembrou de um conto de Lygia Fagundes Telles, em que uma moça foi presa no cemitério pelo ex-namorado... mas era outra história.

   O desespero foi chegando... junto com ele, o medo!

   A mais nova puxou um medicamento e ofereceu à outra, que recusou.

    - Calma, vamos sair dessa.

    Ligaram para um primo comum que conhecia muita gente, quem sabe conhecia o secretário municipal responsável pelo cemitério?

   Este ligou para o irmão jornalista, que conhecia todo mundo ainda mais, para tentar ajudar as primas.  Não sem antes rir muito da situação inusitada e sugerir a elas que pulassem o muro. Sim, duas senhoras idosas, não exatamente magrinhas, probleminhas nos joelhos, pulando o muro do cemitério...

    Enquanto aguardavam o contato dos primos, ouviram um barulho, sentiram um ventinho gelado e ouviram um risinho zombeteiro:

      - Então, que arte andaram aprontando? Estão de castigo aqui conosco?

     Com as faces pálidas de susto e os olhos esbugalhados, viram o ectoplasma do irmão mais novo da mais velha, que olhava para elas, divertido, brincando, como sempre fazia enquanto vivera.

      - Vieram nos visitar mas não queriam nos ver?

     Ambas tremiam, assombradas, com algo tão inesperado e que nunca imaginaram acontecer com elas.  Permaneceram estáticas, mudas, coração saltando pela boca, com medo.

     O espectro, ainda brincando, chamou os pais, o cunhado (marido da mais velha), as tias, os primos, os avós...

      Todos foram chegando devagarinho; elas permaneciam imóveis e lívidas...

      O marido da mais velha brincou com ela:

    - Saudades de mim? Veio me ver? Mas vieram muito tarde, é perigoso algum malandro estar por aí e querer fazer alguma maldade com vocês.

       Os pais, as tias e os primos riam, divertidos:

       - Vamos fazer uma festa com a presença delas aqui.  É que elas não sabem das festas que fazemos depois que fecham os portões da nossa casa...

   Os avós ficaram felizes com a visita, e queriam abraçá-las... foram se aproximando...

         Tocou o celular e a mais nova atendeu:

        - Oi, primo. Quando? Em vinte minutos? Então está bem. Aguardamos no portão norte. Muito, mas muito obrigada!

        Com o toque do telefone e a volta à realidade, dissiparam-se as visões.

        O lusco-fusco tomara conta do ambiente, e as primeiras luzes começaram a ser acendidas.

      No tempo marcado, o funcionário veio, abriu o portão e desculpou-se.  Saíra quarenta minutos mais cedo pois não vira ninguém no local e estava começando a chover.

     Aliviadas, saíram apressadamente. Ao cruzarem o portão norte, deram  uma olhadinha para trás a tempo de ver seus queridos abanando e mandando beijinhos...

       - Voltem sempre, outra vez com mais tempo!

 

Lorení Dalla Corte.

Setembro/2021.  

                                      

(Crédito imagem: https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/mulher/dicas-evitam-assalto-a-casa-durante-viagens-curtas-e-longas,3329c709df794410VgnVCM10000098cceb0aRCRD.html )                                                                          

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