domingo, 19 de agosto de 2018

SARAMAGO E O VOTO EM BRANCO

  


O livro de Saramago que tenho às mãos.
  Mais uma crônica dominical, mas não, necessariamente, semanal.  Verifico, espantada, que há tempos não escrevo.  Os compromissos da vida me enleiam, às vezes sinto-me amarrada.
     Mas, mesmo assim, seguimos nossa caminhada rumo ao fim.  E que este seja bom, belo, sereno, indolor. De preferência, dormindo.
     Neste ínterim, leituras.
   O Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago, deixou-me reflexiva nestes "tempos bicudos", como dizia Mário Quintana.  Estamos, novamente, frente às eleições presidenciais, renovação do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas Estaduais, bem como governadores.
     O povo, em geral (nós), já discute quem seriam os melhores candidatos; a ilusão do voto, de que a vontade popular será respeitada, e que o povo "manda" no país, através do voto e da pretensa democracia, já toma conta de muitas cabeças desavisadas.  Infelizmente, em nosso país, as pessoas com discernimento político real, são pouquíssimas.  A base do povo, da pirâmide, nem digo social, mas cultural, é tão pequena, que, creio, não temos como medir.
     O que, realmente, concretamente, acontece nos meios políticos, nos lugares onde se negocia de fato os rumos da nação, onde se decide tudo,  só uma ínfima quantidade de pessoas faz parte e tem conhecimento.  O povo vive em outro mundo, o da vida real, em que as pessoas levantam cedo todo o dia para trabalhar, enfrentam todo tipo de dificuldades, começando pela alimentação adequada, transporte, seja individual ou coletivo; falta de estrutura em estradas, ruas, cidades; escolas com sua parte física muitas vezes caindo aos pedaços, ou lugares onde nem escola tem.  Falta de emprego para uma grande parcela da população; escolas nem sempre com professores bem preparados, uma vez que a educação, infelizmente, não é e nunca foi primazia em nenhum governo em nosso país. É, e continuará sendo, tema de campanha; mas, nunca, tema de solução.
     Assistimos, estarrecidos, noticiários (em qualquer canal televisivo, ou pela internet), lemos em jornais e revistas, e vemos pessoas perto de nós sofrendo com atendimento precário à saúde,  com hospitais sem médicos ou com poucos médicos; onde faltam medicamentos e diversos materiais de uso corrente.  Vemos, perto de nós, a violência tomando conta, sejam assassinatos, roubos, furtos, violência contra a mulher, contra crianças.  
     E vemos os políticos gastando milhões, bilhões de dinheiro nosso - chamado público - em suas campanhas para reelegerem-se. Fora a corrupção, altamente desenvolvida em nosso país e exaustivamente demonstrada através de processos judiciais penais em andamento, em que políticos famosos e seus correligionários, amigos, financiadores e outros tais foram condenados e estão presos.  Isto dá nojo.
   O que Saramago tem a ver com isto?
   O livro que mencionei narra uma história em que 80% dos eleitores da capital de um país fictício votam em branco.  Demonstram, assim, sua insatisfação, sua revolta, a devolução do cuspe na cara que os políticos dão ao povo todos os dias.  O famoso "o povo é só um detalhe" de uma ex-ministra da fazenda da era Collor. O que os políticos deste romance fazem, para tentar descobrir quem fazia parte deste alto número de revoltados?  Declaram estado de sítio na capital, abandonam a cidade, retiram serviços essenciais, bombeiros, polícia, hospitais, etc, e mandam o exército cercá-la.  
     O povo, entretanto, continua vivendo sua vida, trabalhando, comendo, dormindo, se divertindo, como se nada tivesse acontecido.  Ninguém admite que votou em branco, pois o voto é secreto, e ninguém é obrigado a dizer em quem votou ou como votou.  E ninguém dedura ninguém.  Ninguém sabe, ninguém viu.
     No entanto, os políticos tinham que dar uma resposta a esta "ofensa".  O primeiro ministro reúne o gabinete; um dos ministros - o do interior - se encarrega de encontrar o culpado, o ou a cabeça do fato.  Nisto transcorre a história, a investigação, policiais, comissários, e se acha uma pessoa culpada.  Pelo decorrer da história, nós, leitores, sabemos da inocência da mulher.  Mas, ao final, como exemplo, ela é assassinada, bem como o comissário.  Alguém tem que ser culpado pelo levante da "epidemia branca" dos eleitores.
     Quem quiser refletir antes das eleições sobre este fato, está aí uma ótima indicação.  Saramago sendo Saramago. A sabedoria em pessoa.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a lucidez.- SP:Cia. das Letras, 2004, 325p.