“...o
que mais amo neste cemitério é precisamente este abandono, esta solidão. As
pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total.
Absoluta. (...)
Um
baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio.
Olhou em redor. A peça estava deserta.
Voltou a olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da
portinhola fechada. Tinha seu sorriso
meio inocente, meio malicioso. (...) Ele esperou que ela chegasse quase a tocar
o trinco da portinhola de ferro. Então
deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás. (...)
-
Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem
devagarinho. Você terá o pôr-do-sol mais
belo do mundo. (...)
E,
de repente, o grito medonho, inumano:
-NÃO!
Durante
algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de
um animal sendo estraçalhado. Depois, os
uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da
terra. Assim que atingiu o portão do
cemitério, lançou ao poente um olhar mortiço.
Ficou atento. Nenhum ouvido humano
escutaria agora qualquer chamado.
Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.”
TELLES, Lygia
Fagundes. Mistérios.- RJ: Nova Fronteira, 1981. Conto: Venha ver o pôr-do-sol,
p.201
As primas havia muito não se
encontravam por causa da pandemia.
Com uma diferença de idade de sete
anos, cresceram longe uma da outra. Moravam
em cidades diferentes.
Agora, na fase quase e pós-sessenta,
reencontraram-se.
Algumas afinidades surgiram.
Uma foi visitar a outra, foram jantar
num restaurante conhecido e, após, tomaram uma garrafa de vinho branco; ficaram
conversando até tarde, fazendo o que chamaram de terapia familiar, trocando
impressões a respeito de alguns eventos em suas vidas.
De acontecimentos políticos a posições
ideológicas, criação dos filhos, traumas da infância – quem não os tem? –
estudos, profissão, viagens e aposentadoria... tudo era assunto. Muita risada e um pouco de vinho deixaram-nas
leves.
No outro dia resolveram ir levar flores
e pronunciar preces à tia recém-falecida, mãe da mais velha.
Chegaram ao cemitério municipal pelas dezessete
horas.
O dia estivera cinzento, emburrado, e
não decidia se chovia ou não. As nuvens
meditavam.
O cemitério estava lotado, já não havia
mais lugar para nenhum falecido, e as autoridades municipais já haviam
inaugurado outro cemitério.
Rapidamente localizaram o túmulo em que
se encontravam os queridos familiares.
Colocaram as flores, fizeram suas
orações e dirigiram-se para a sepultura de outra tia e de uns primos, que eram
perto.
Já iam encaminhando-se para a saída,
quando lembraram que poderiam encontrar o túmulo dos avós. Fica lá no centro da necrópole, perto daquele
coqueiro.
Começara uma garoa bem fininha, e o céu
escurecera mais um pouco.
Caminharam por entre os jazigos, em
calçadas estreitíssimas e de difícil acesso.
Chegaram ao coqueiro. A mais velha sempre teve dificuldades de
localizar a tumba dos avós, era um emaranhado de túmulos, um labirinto...
Caminharam para todas as direções a partir do coqueiro. Não localizaram.
Como a chuva estava ficando mais
intensa e escurecendo, resolveram falar com o funcionário que tinha tudo
anotado.
Foram em direção ao posto em que ele
deveria estar.
Com as sombrinhas abertas, avistaram,
ao longe, um vulto.
- É ele – disse a mais velha.
Não era.
Na semi-obscuridade momentânea,
confundiram uma imagem de um anjo de sepultura com a pessoa que deveria estar
por perto. O escultor fizera um ótimo
trabalho...
Desceram mais um pouco. O posto estava fechado. Dezessete horas e
trinta minutos, conferiram no relógio.
Com dificuldade, desceram até o portão
por onde haviam entrado.
Corações acelerados, ansiosas,
verificaram que o portão norte estava fechado, chaveado. Com corrente e
cadeado!
Havia quatro portões.
O que ficava em frente a este, lá
longe, ao sul, também estava fechado.
A mais nova estava em estado de pânico.
- E agora, que fazemos? Estamos presas
no cemitério! Vou perder meu ônibus...
Ambas cardíacas, com hipertensão e
assustadas...
Aterrorizadas, foram ver os outros dois
portões. Fechados.
A mais velha lembrou de um conto de
Lygia Fagundes Telles, em que uma moça foi presa no cemitério pelo
ex-namorado... mas era outra história.
O desespero foi chegando... junto com
ele, o medo!
A mais nova puxou um medicamento e
ofereceu à outra, que recusou.
- Calma, vamos sair dessa.
Ligaram para um primo comum que conhecia
muita gente, quem sabe conhecia o secretário municipal responsável pelo
cemitério?
Este ligou para o irmão jornalista, que
conhecia todo mundo ainda mais, para tentar ajudar as primas. Não sem antes rir muito da situação inusitada
e sugerir a elas que pulassem o muro. Sim, duas senhoras idosas, não exatamente
magrinhas, probleminhas nos joelhos, pulando o muro do cemitério...
Enquanto aguardavam o contato dos
primos, ouviram um barulho, sentiram um ventinho gelado e ouviram um risinho
zombeteiro:
- Então, que arte andaram aprontando?
Estão de castigo aqui conosco?
Com as faces pálidas de susto e os
olhos esbugalhados, viram o ectoplasma do irmão mais novo da mais velha, que
olhava para elas, divertido, brincando, como sempre fazia enquanto vivera.
- Vieram nos visitar mas não queriam
nos ver?
Ambas tremiam, assombradas, com algo
tão inesperado e que nunca imaginaram acontecer com elas. Permaneceram estáticas, mudas, coração
saltando pela boca, com medo.
O espectro, ainda brincando, chamou os
pais, o cunhado (marido da mais velha), as tias, os primos, os avós...
Todos foram chegando devagarinho; elas
permaneciam imóveis e lívidas...
O marido da mais velha brincou com ela:
- Saudades de mim? Veio me ver? Mas
vieram muito tarde, é perigoso algum malandro estar por aí e querer fazer
alguma maldade com vocês.
Os pais, as tias e os primos riam,
divertidos:
- Vamos fazer uma festa com a presença
delas aqui. É que elas não sabem das
festas que fazemos depois que fecham os portões da nossa casa...
Os avós ficaram felizes com a visita, e
queriam abraçá-las... foram se aproximando...
Tocou o celular e a mais nova atendeu:
- Oi, primo. Quando? Em vinte minutos?
Então está bem. Aguardamos no portão norte. Muito, mas muito obrigada!
Com o toque do telefone e a volta à
realidade, dissiparam-se as visões.
O lusco-fusco tomara conta do ambiente,
e as primeiras luzes começaram a ser acendidas.
No tempo marcado, o funcionário veio,
abriu o portão e desculpou-se. Saíra
quarenta minutos mais cedo pois não vira ninguém no local e estava começando a
chover.
Aliviadas, saíram apressadamente. Ao
cruzarem o portão norte, deram uma
olhadinha para trás a tempo de ver seus queridos abanando e mandando
beijinhos...
- Voltem sempre, outra vez com mais
tempo!
Lorení Dalla Corte.
Setembro/2021.
(Crédito imagem: https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/mulher/dicas-evitam-assalto-a-casa-durante-viagens-curtas-e-longas,3329c709df794410VgnVCM10000098cceb0aRCRD.html )