sábado, 4 de janeiro de 2025

Onde estivestes de noite, Clarice Lispector


 


Como postei há pouco tempo, Clarice Lispector é minha inspiração.

Estou relendo sua obra devagarinho, sem pressa. É um regozijo! Degustando seus pensamentos, seus insights!

Desta vez é seu livro de contos "Onde estivestes de noite".

Simplesmente um nó na cabeça! Adoro!

Ela abre o livro com o conto "A procura de uma dignidade".

É uma história de uma senhora ligeiramente perdida, que entra, não sabe como, no estádio do Maracanã, e se perde no emaranhado de caminhos, corredores, salas.  Ela não lembra como chegou ali.

Após muito caminhar, consegue sair e ir para casa.

Segundo Clarice, ela ia a uma conferência cultural que, de acordo com a personagem, a mantinha informada, atualizada culturalmente e mantendo a mente sadia; sempre lhe davam uns 57 anos, embora estivesse beirando os 70.

O conto desenrola-se depois de ela chegar em casa.

Dado momento, após várias peripécias, ela senta-se na cama do seu quarto, e, depois de  várias reflexões sobre a vida, o ser, vontades, um desejo foi crescendo, devagarinho.

Ela era secretamente apaixonada pelo Roberto Carlos, o cantor.  E tinha devaneios secretos com ele... beijos, abraços... e seu desejo carnal foi crescendo!

Olhou-se no espelho "por fora - viu no espelho -ela era uma coisa seca como um figo seco.  Mas por dentro não era esturricada.  Pelo contrário."(...) E agora estava emaranhada naquele poço fundo e mortal, na revolução do corpo.  Corpo cujo fundo não se via e que era a escuridão das trevas malignas de seus instintos vivos como lagartos e ratos.  E tudo fora de época, fruto fora da estação?  Por que as outras velhas nunca lhe tinham avisado que até o fim isso podia acontecer?  Nos homens velhos bem vira olhares lúbricos.  Mas nas velhas não.  Fora de estação.  E ela viva como se ainda fosse alguém, ela que não era ninguém." (...) "Ali estava, presa ao desejo fora de estação assim como o dia de verão em pleno inverno.  Presa no emaranhado dos corredores do Maracanã.  Presa ao segredo mortal das velhas.  Só que ela não estava habituada a ter quase 70 anos, faltava-lhe prática e não tinha a menor experiência." (...) Seus lábios levemente pintados ainda seriam beijáveis?(...) : tem!que!haver!uma!porta!de saiiiiiída!"

Clarice viveu 57 anos.

Sua percepção e sensibilidade colocam, na década de 70 do século passado, problemas vivenciais de uma idosa que está chegando aos 70 anos. Como ela sabia disso?

Agora, na segunda década do século XXI, discute-se a saúde física e mental de mulheres e homens que chegam à chamada terceira idade, embora alguns esquecimentos aconteçam, como a personagem que perdeu-se e entrou em um lugar errado; mas seus corpos continuam saudáveis, seus instintos e desejos estão vivos como ela.

Naquela época não se imaginava uma mulher de quase 70 anos tendo desejo por um homem, ainda mais um cantor, uma personagem pública, famosa.

Fui adolescente na década de 70, quando ela escrevia. A maioria dos pais não orientavam sexualmente seus filhos, muito menos os mais velhos falavam qualquer coisa sobre sexo no decorrer da vida e na velhice.

Jamais conseguiria pensar em minhas avós tendo estas sensações que a personagem teve. Entretanto...

Clarice era uma visionária.  Sempre à frente do seu tempo.  Embora tenha morrido jovem, para nossos tempos, percebia o que acontecia com as pessoas a sua volta. Fantástica!

Este conto eu achei o máximo! Por isto o destaque.

São 17 contos em que Clarice nos  tonteia, nos deixa estupefatos, com sua exposição de ideias, pensamentos, sensações, novidades, surpresas que nos deixam atônitos e deslumbrados.

Vale a leitura, sempre!


LISPECTOR, Clarice. 1920/1977. Onde estivestes de noite- I ed.- Rio de Janeiro:Rocco, 2020.

 



 


 


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