quinta-feira, 12 de outubro de 2017

INFÂNCIA





Jogo de caçador ou queimada


Meu pai levantava-se cedo.
Fazia suas abluções matinais, na bacia sobre o tripé.
A toalha era feita em casa, tecido fino, bordado, com franjas.
Seu rosto era magro e moreno. 
A Prefeitura o aguardava com suas obras.

Minha mãe acordava-me cedo, mais cedo ainda,
Passando o pano por debaixo da minha cama, nossas camas.
Ela gostava de trabalhar de manhã.
No forno de barro,
as brasas já brilhavam, avermelhadas,
acendiam
meio se apagavam.
E o calor já antevia 
as cucas, os pães deliciosos, enormes, macios
amassados por suas belas mãos
na noite anterior.
A roupa já no varal.
O que era branco, ardia nos olhos de tão branco:
panos de prato, lençóis, fronhas, uniformes escolares.
O feijão chiando na panela de pressão.

Levantávamos correndo, meus irmãos e eu.
O café, passado no saco, com leite, gostoso, 
deixava no ar o seu aroma chamativo;
pão com schmier e manteiga caseiras.
Corrida lépida para a escola, a duas quadras de casa.
O mano mais novo dormia, privilégio de ser o bebê.

Na escola, D. Helena preparava
a sopa mais gostosa do lugar.
Meu irmão mais velho e eu, sagazes...
entrávamos duas vezes na fila da merenda.
Não era fome.
Era a delícia da sopa. As serventes faziam de conta que não notavam,
piscavam o olho.
Grupo Escolar Nossa Senhora da Penha.

Meio-dia todos ao redor da mesa.
Oração - cada dia um que fazia -
e todos não queriam...
criança quer comer, tem uma fome infinda,
sem esperar formalidades religiosas.

Lembro... com carinho e saudade
o brilho do arroz
a batata pulando, ainda, na panela,
ensopada, dividindo espaço com o guisado.
O feijão fazia bolhas em seu caldo grosso.
E as verduras, sempre renegadas por nós, crianças,
estavam lá, no seu prato.
Sobremesa: doce de abóbora, delícia gaúcha.

À tarde...ah, à tarde...
mãe descansava com o bebê,
irmãos fugiam para a sanga,
e eu já lidava com meus alunos imaginários.
No quadro, presente de Natal,
repassava toda a matéria do dia.
Imitava minha professora, Santa Edy Nehring:
seus gestos
seu tom de voz
sua letra...
explicava tudinho.
Não sabia, àquele tempo,
que estava estudando,
reforçando o que aprendera no dia.

Tardinha,
após o lanche: batida de banana com leite,
pão feito de manhãzinha,
era a hora de reunir a gurizada da rua, na rua de chão batido.
Guris e gurias da vizinhança:
jogo de sapata, passar o anel, diabo rengo, 
jogar caçador (eu era sempre a que morria primeiro...)
brincar de letz, de se esconder...

Infância, infância!
Estás tão lonnnnnngeeeeeeeee...

E tinha um tempo em que as formigas de asas
nos perseguiam, perseguiam, perseguiam...
ficavam voando ao nosso redor, nos mandando embora.

Escurecendo...
a mãe chamava:
-Hora do banho e da janta!

Entrávamos, não sem, primeiro, titubear, empurrar a hora.

Meu pai mateava, dividindo seu dia com a mãe, que cuidava do pequeno.
E, cansados,
felizes,
rostos afogueados,
suados e sujos da poeira,
disputávamos o chuveiro.

Noite chegando,
janta na mesa,
lassidão no corpo,
alma leve,
noite boa de sono.

Infância, infância...
impossível não sentir nostalgia.

Lorení Dalla Corte
12/10/2017


(Imagem: http://www.fazfacil.com.br/lazer/como-jogar-queimada/)

Nenhum comentário:

Postar um comentário